segunda-feira, 24 de maio de 2010

UMA FRAÇÃO DE SEGUNDO

(*Essa história conta o que aconteceu na mente e nas lembranças de um rapaz nos exatos segundos em que ele caiu do trem em movimento... Os segundos entre a VIDA e a MORTE.)

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A voz de sua mãe ainda ecoava em sua mente: “Leve agasalho, meu filho, falou no Jornal Nacional que vai esfria à tarde.”

_Tô levando, mãe. Tchau.

Engraçado, ele não se lembrava se havia beijado sua mãe quando saiu. Sentia-se estranho. Lembrou-se e riu sozinho; acho que estava com nove ou dez meses de vida quando levou um tombo da cama, ele era tão pequeno que a altura da cama até o chão pareceu-lhe um precipício, rodou... rodou... até ouvir o baque seco de seu corpo no chão. Tudo escureceu e quando acordou se viu já com seus seis ou sete anos, brincava de bicicleta com seus amigos. Qual era mesmo o nome de cada um? Tuca, Chorão, Riva e Celo. Riu de novo sozinho. Chorão tinha esse apelido porquê chorava à toa. Qualquer coisa ele abria o berreiro, ninguém gostava de brincar com ele, mas até que ele era legal, quando tinha doces sabia dividir.

Brincava muito de bicicleta nas ruas esburacadas e sem asfalto da cidade de Francisco Morato, sua terra natal. Que ano era mesmo aquele em que ele e sua turminha ficava o dia inteiro zoando pelas ruas? Era 1.985 ou 1.986? Não conseguia se lembrar, mas lembrou que adorava brincar na linha do trem, gostava de nadar nas lagoas que existiam, quer dizer, que ainda existem entre as estações de Francisco Morato e Franco da Rocha.

De repente ele percebeu que estava dentro do trem, a caminho de seu serviço. Era ajudante geral de uma gráfica localizada na Avenida São João. Ele desembarcava na Estação da Luz e seguia a pé até o seu destino. Será que ele estava dormindo? Olhou em volta e viu um rosto conhecido. Era a Jéssica, linda como sempre. Sorria para ele. Ele sorriu de volta, ia levantar-se para conversar com ela quando ouviu gritos, olhou em direção ao tumulto e ficou estarrecido, uma criança sentada no colo do pai havia acabado de levar uma pedrada perto do olho esquerdo, abriu um corte muito profundo e o sangue escorria caindo pelo braço do pai desesperado.

_A pedra veio de fora!_ Gritavam.

_Estanca o sangue com a mão!

_Abram espaço pra criança respirar.

A menina gritava de dor e o pai angustiado não sabia o que fazer.

Novamente devaneios. O rapaz lembrou-se que quando era criança e brincava na linha do trem também gostava de atirar pedras contra os vagões que passavam velozmente. Será que algum dia também provocara uma desgraça dessas? Encolheu-se no banco e ficou quietinho. Parecia que todos aqueles olhares o estavam censurando

_Tá vendo o que você fez?

_Ela vai ficar cega por sua culpa! Sua culpa!

“_Leve o agasalho, meu filho. Vai esfriar. Falou no jornal. Você não vai me dar um beijo?”

É mesmo, ele lembrou-se agora que não havia beijado sua mãe quando saiu de manhã.

Ficou enjoado e vomitou. Sua cabeça doía.

Olhou novamente em direção à Jéssica. Ela continuava sorrindo para ele. Ele ficou envergonhado, acabara de vomitar. As pessoas se afastaram um pouco. Olhou de soslaio para cada rosto que ocupava aquele vagão. Engraçado, o trem estava tão cheio e ainda assim, dali de onde ele estava, conseguia ver todos os rostos de uma ponta à outra do vagão. Uma mulher estava triste, percebeu. Acho que tinha brigado com o marido antes de sair de casa. Não. Não era nada disso, ela estava indo visitar o filho internado com AIDS na Santa Casa de Misericórdia no bairro de Santa Cecília. “Ué, como ele sabia disso?”

Um grupo de homens jogava baralho, absortos com a distração não pensavam em seus problemas particulares.

Um casal de jovens se beijavam freneticamente.

O rapaz sorriu. Quanta vida! Quantas histórias escritas naquele espaço.

Sentiu um ventinho gelado, era o ventilador do trem que lhe soprava. Arrepiou-se. Procurou a blusa dentro da mochila e ouviu ecoar novamente a voz da mãe: “Leve o agasalho, meu filho. Vai fazer frio.”

Pensou na sopa quente de lentilhas que só sua mãe sabia fazer. Nas brigas que provocava com sua irmã quando achava que ela comia mais que ele. Na saudade que sentia de seu pai...

Por quê será que ele estava se lembrando de tantas coisas? Que estranho! Mas lembrou-se que quando o trem saiu às cinco horas da Estação de Francisco Morato ele havia ficado pendurado na porta, estava muito lotado, mas se ele não arriscasse chegaria atrasado no serviço.

Ainda bem que agora estava sentado e fora de perigo.

_Puxem a trave de segurança do trem! Um rapaz acabou de despencar da porta!

_Ai, coitado! Ficou todo esmagado!

_Cruzes! Ave Maria três vezes!

_Também, sabe que é perigoso ficar pendurado na porta e não tá nem aí.

O rapaz lembrou-se de novo que não havia beijado sua mãe quando saiu de manhã.

Um comentário:

  1. as vezes suas historias me dão medo ...mais essa me deixou um pouco triste ... ser arancado da vida realmente é triste ...

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